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segunda-feira, 20 de julho de 2009

Como o Soldado Conserta o Gramofone, de Sasa Stanisic (Quetzal Editores)

ou
Como o Camarada-Chefe do Inacabado guarda histórias por contar
atrás do armário da avó e como para certas coisas não há explicação,
há somente o «pois é»


Numa tentativa de dar início a este texto, a senhora Palomar pensou em pincelá-lo com variadas formas estilísticas, dar um aspecto elaborado à coisa, decerto na vã tentativa de se apropriar sem qualquer pudor do estilo vanguardista de Sasa Stanisic. Mas o facto é que o tempo e a habilidade escasseiam em iguais doses. Permitam-me, então, que corte caminho e opte por levantar, assim, sem mais, um pouco o véu:

«Se tu tiveres o chapéu na cabeça e agitares a varinha, serás o feiticeiro de capacidades mais poderoso dos países não alinhados. Poderás revolucionar muita coisa, contanto que isso seja conforme com as ideias de Tito e esteja em concordância com os estatutos da Liga dos Comunistas da Jugoslávia […] O dom mais valioso é a invenção, a maior riqueza, a fantasia. Fica sabendo isso Aleksandar, disse o avô, a sério, quando me pôs o chapéu na cabeça, fica sabendo isso e imagina o mundo mais belo.»

Vamos ao que vamos. Falemos de magia. Falemos de Como o soldado Conserta o Gramofone, a obra inaugural deste autor bósnio:

Aleksandar dá a voz e nem sempre o corpo. Visegrad, a pacata cidade da Bósnia onde vive, serve o propósito de um cenário tão fora do comum como a infância do narrador. Consta que a sua idade ronda os oito e os catorze anos, conforme as conveniências. Filho de pai sérvio e de mãe bósnia muçulmana, Aleksandar é um meias, uma mistura. É um jugoslavo e, portanto, está a desagregar-se. O dom de contar histórias, herdou-o do avô, a promessa de continuar sempre a contar quebrá-la-á mais à frente, quando a realidade de uma pátria falecida lhe entrar pela janela com a fúria das chuvas torrenciais. Tudo a seu tempo. Para já, «se houver histórias em qualquer lado, eu estou em qualquer lado.»

Se é certo e sabido que não há novidade alguma na técnica narrativa de recorrer ao olhar de uma criança para expor os horrores e o absurdo de uma guerra, manter o equilíbrio entre uma ingenuidade descomedida e a tentação de pintar um quadro excessivamente mórbido é já pisar uma outra pátria, principalmente tratando-se de um romance autobiográfico, como é o caso. Mas que delícia descobrir que Sasa Stanisic se mantém no fio da navalha com a perícia dos grandes contadores de histórias. Em Como o Soldado Conserta o Gramofone, a Guerra dos Balcãs submete-se às tonalidades do arco-íris reflectido nas águas de um Drina atrevido, e o dia-a-dia toma a forma de uma manta de retalhos agridoce entretecida pelo engenho de Aleksandar, o camarada-chefe do inacabado, título glosado na obra e que serve de porta-estandarte ao personagem.

O relato é feito em vaivéns de pré e pós guerra, com inserções de episódios do próprio conflito, e está dividido por capítulos, cujos enunciados são um mimo literário, um preâmbulo que pressagia a gargalhada solta, o sorriso embevecido ou a lágrima compassiva que, nestas 382 páginas, estão sempre à espreita. Sasa Stanisic não faz juízos de valor explícitos, não se envolve em ensaios histórico-pollíticos, não tenta espetar -nos a sangue frio imagens de atrocidades e selvajaria. O que realmente nos impossibilita de ficar imunes a esta leitura é a suavidade com que Aleksander nos faz mergulhar na crua realidade da história de todas as guerras e de todos os refugiados. Atento ao pormenor, e detentor de uma imaginação prodigiosa e de um talento para a fantasia , com a dose certa de humor, ironia e um atrevimento enternecedor, descreve o quotidiano na forma de anedotas rocambolescas − a festa de inauguração de uma retrete interior que se cruza com recordes do mundo de dor de barriga, o peso da mágoa de uma traição amorosa ou a raiva se ser superado num jogo de Tetris, um avô triste que se casa com o Drina, as três mortes de Tito, a obstinação de um peixe-gato com óculos, um camarada professor que deixa de ser camarada e exige ao aluno o uso de aspas nos diálogos das redacções … Mas a perda, a nostalgia e a dor também marcam presença e podemos encontrá-las nas muitas dúvidas e desejos desta criança que sofre com destruição do seu mundo, que vê demasiados cadáveres a afundarem-se nas águas do seu amado Drina −«A que saberia, se tivesse um sabor? A que sabe um tal cadáver? Um rio também é capaz de odiar, tu que achas?»− e que é obrigada a refugiar-se na Alemanha.

Se Aleksandar fosse feiticeiro de capacidades as coisa poderiam opor-se, os corrimãos, os gramofones, as espingardas, as casas não se consumiriam em chamas, tocariam promessas com a mestria de Bach e teriam um reportório de músicas tão variado e imprevisível como os estados de espírito que moram dentro de cada um dos seus habitantes; as recordações teriam o mesmo sabor do seu gelado favorito; as nuvens seriam pegajosas como teias de aranha para que as granadas ficassem presas nela;

A tonalidade e a melodia de Como um Soldado Conserta o Gramofone faz-nos querer voltar a ser crianças; a aparente ingenuidade disfarçada de prosa é comovente e assustadora. Nota-se pinceladas de prémio Nobel na recorrência à ponte sobre o Drina, não sei se propositadas. Esta obra é pura magia.

Sinopse aqui. Biografia do autor aqui.

Como o Soldado Conserta o Gramofone, Sasa Stanisic, Quetzal Editores. Tradução de Paulo Osório de Castro e revisão de Pedro Ernesto Ferreira.

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